O MÉSON PI

O MÉSON PI

A partícula que acelerou a ciência no Brasil

O final da década de 1940 foi uma época muito movimentada para a ciência brasileira, marcada por acontecimentos que alavancaram a Física experimental do Brasil nos anos seguintes. Entre grandes avanços no entendimento sobre as forças que mantêm o Universo como o conhecemos, Prêmios Nobel e o domínio de tecnologias capazes de recriar as condições de dentro de estrelas, no centro desta rede de grandes eventos estava uma pequena partícula, o méson pi.

Na época, uma das grandes questões da Física estava intimamente ligada à existência do próprio átomo, cujo núcleo é formado por prótons e nêutrons: como essas partículas poderiam manter-se unidas no núcleo? Prótons possuem cargas positivas, e portanto deveriam se repelir, enquanto nêutrons não possuem cargas positivas nem negativas, portanto não contribuem para a interação. Para explicar este dilema, o físico japonês Hideki Yukawa propôs a teoria para a existência de uma nova partícula, o méson pi, na década de 1930. Essa partícula seria responsável por mediar a interação entre prótons e nêutrons dentro do átomo, permitindo que permaneçam unidas. No final da década seguinte, a existência do méson pi seria comprovada graças a um trabalho que contou com o protagonismo do físico curitibano César Lattes.

Em 1946, incentivado por seus professores e colegas de pesquisa, o então jovem Lattes desembarcava em Bristol, na Inglaterra, a convite do físico italiano – e seu ex-professor na USP – Giuseppe Occhialini, para trabalhar no Laboratório de Física H. H. Wills, da Universidade de Bristol. No laboratório, Lattes passou a fazer parte do grupo de pesquisa do físico inglês Cecil Powell, que conduzia pesquisas relacionadas à detecção de raios cósmicos usando placas fotográficas especiais. Estas placas fotográficas eram revestidas por uma camada de emulsão nuclear, uma substância gelatinosa com sais de prata, que reage com partículas carregadas que a atravessam, marcando os rastros de suas trajetórias. Por muitos anos, esse método permaneceu como um dos mais econômicos e efetivos na detecção de raios cósmicos, bem como de partículas mais leves geradas na colisão destes raios com moléculas da atmosfera.
César Lattes (1924 - 2005). Fonte: Arquivo Nacional.
César Lattes (1924 - 2005). Fonte: Arquivo Nacional.
Trabalhando com essas placas, Lattes teve a ideia de modificar a substância que compunha as emulsões nucleares, aumentando sua sensibilidade e permitindo que as trajetórias de partículas nelas marcadas não se apagassem tão rápido com o tempo. Ao levarem algumas das placas modificadas para fazer detecções na montanha Pic du Midi, nos Pirineus franceses, a equipe ficou surpresa ao perceber traços nas emulsões que não pareciam pertencer a nenhuma partícula conhecida. Após muita discussão decidiram que deveria se tratar do méson pi de Yukawa, que estaria sendo liberado de dentro de núcleos atômicos após estes serem desintegrados em colisões com raios cósmicos. Mas as poucas detecções que tinham em mãos não continham informação suficiente para determinar todas as propriedades da nova partícula encontrada.
Com a missão de conseguir mais detecções desta partícula, Lattes voou para a Bolívia para expor as emulsões modificadas em Chacaltaya, uma montanha nos Andes bolivianos a mais de 5 mil metros acima do nível do mar, uma altitude quase duas vezes maior do que a de Pic du Midi, a 2,8 mil metros acima deste nível. Estar nas alturas era importante, pois em altitudes maiores a atmosfera é menos concentrada, diminuindo as chances de raios cósmicos se chocarem com as moléculas de ar no meio do caminho, e assim, chegarem até os detectores. Lattes retornou a Bristol com emulsões repletas das marcas que apontavam a passagem de mésons pi, permitindo à equipe confirmar de vez a existência da partícula, e também as suas propriedades, como o fato de que méson pi, quando fora do átomo, eventualmente se desintegra dando origem a outra partícula, na época já conhecida, o múon.

Com a comprovação da existência do méson pi e, consequentemente, da teoria de Yukawa, uma peça importante se encaixava em um quebra cabeça cósmico: a explicação que se tinha para a existência do núcleo atômico como o conhecemos, de fato estava correta. O trabalho da equipe de Bristol foi publicado em 1947, e resultou no Prêmio Nobel da Física de 1949, concedido a Hideki Yukawa, pela previsão teórica do méson pi, e também no de 1950, concedido a Cecil Powell, líder da equipe do laboratório responsável pela descoberta experimental.

As repercussões da descoberta, no entanto, não terminaram por aí. Na mesma época, o então maior acelerador de partículas do mundo, construído na Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, passava por problemas. Esperava-se que a máquina milionária fosse capaz de gerar partículas subnucleares, tais como o méson pi, por meio da colisão entre partículas maiores. No entanto, nada do tipo era encontrado. No ano seguinte à descoberta em Bristol, Lattes dirigiu-se para Berkeley carregando consigo uma leva das emulsões modificadas e toda a técnica e conhecimento acumulados no assunto, esperando detectar a existência de mésons também no acelerador norte-americano. Lattes e o físico estadunidense Eugene Gardner trabalharam juntos, com grandes expectativas, na busca pelos mésons, e o resultado veio sem delongas: os rastros deixados nas emulsões pelas partículas do acelerador logo denunciaram a presença de mésons. A recém descoberta partícula subnuclear gerada na natureza pela colisão de raios cósmicos, agora também era comprovadamente gerada em máquinas criadas pela ciência. Esse evento ganhou grande repercussão internacional, mostrando a viabilidade de se estudar partículas subatômicas com o uso de aceleradores, e impulsionando o uso destas máquinas em pesquisas físicas pelas décadas seguintes.

Neste ponto César Lattes possuía apenas 24 anos de idade, e sua participação crucial em dois eventos transformadores para a Física num período tão curto de tempo já o haviam tornado um físico de renome internacional. Este foi o empurrão que a ciência brasileira precisava. No Brasil, a repercussão política dos feitos de Lattes estimulou a consolidação de diversos projetos nacionais relacionados à ciência, como a criação, em 1949, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), do qual Lattes foi o primeiro diretor. Além disso, a década seguinte foi marcada pelo surgimento de instituições ligadas às áreas de pesquisa, educação e fomento à ciência, como o Conselho Nacional de Pesquisas (atual CNPq) e a Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (atual CAPES). O entusiasmo científico também levou ao surgimento de uma colaboração entre Brasil e Bolívia, da qual resultou a construção de um laboratório dedicado à pesquisa em raios cósmicos em Chacaltaya, e após uma troca de cartas entre Yukawa e Lattes no final da década de 1950, também o Japão se juntou à colaboração.

A descoberta de uma pequena partícula foi responsável por catalisar uma transformação no cenário científico do Brasil, bem como transformar a maneira na qual a física de partículas experimental passaria a ser feita no mundo todo pelas décadas seguintes. Na próxima parte deste especial você conhecerá melhor alguns dos grandes experimentos internacionais da Física de Partículas com os quais o Brasil colabora atualmente, com relatos de alguns dos pesquisadores e pesquisadoras brasileiros envolvidos nestes projetos.

Reportagem: Ana Luiza Sério (ICTP-SAIFR), Artur Alegre (ICTP-SAIFR), Malena Stariolo (ICTP-SAIFR);
Consultoria Científica: Rogerio Rosenfeld (ICTP-SAIFR/IFT-UNESP);
Edição: Malena Stariolo (ICTP-SAIFR).

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