O emaranhamento quântico

Como veremos mais a seguir, o emaranhamento quântico é um fenômeno essencial para o funcionamento das chamadas tecnologias quânticas de segunda geração. Mas antes de ser completamente entendido pelos físicos, chegou a confundir Einstein, que o chamou erroneamente de “ação fantasmagórica à distância”.

O emaranhamento é um fenômeno envolvendo duas ou mais partículas quânticas como, por exemplo, dois fótons. A mecânica quântica prediz que, em um dado momento, esses dois fótons podem interagir de tal maneira que eles perdem parte de sua identidade individual. Mesmo quando os fótons são afastados um do outro por grandes distâncias, o par continua se comportando como um todo. “Em um sistema quântico emaranhado, a informação não está mais nos constituintes individuais, mas na correlação entre os constituintes”, explica o físico Rafael Chaves, vice-diretor do Instituto Internacional de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Um par de fótons pode ser emaranhado de várias maneiras. Uma delas é através de sua polarização. Relacionada ao spin dos fótons, a polarização é a direção do campo elétrico oscilante que forma uma onda eletromagnética. A luz do Sol refletida no asfalto da estrada possui uma polarização bem definida, que pode ser filtrada por óculos escuros. Da mesma maneira, é possível produzir em laboratório fótons polarizados em direções específicas, como a vertical e a horizontal.

É possível, por exemplo, criar pares de fótons emaranhados de tal forma que suas polarizações sejam idênticas. Suponha que cada um dos fótons emaranhados é enviado a duas estações de medidas A e B, afastadas por uma grande distância, e que combinaram previamente em medir a polarização dos fótons na direção vertical e horizontal. Quando os físicos repetem a experiência algumas vezes, começam a notar algo de curioso. Na estação A, os fótons chegam com polarizações totalmente aleatórias, sendo metade das vezes vertical e outra metade horizontal. Na estação B, acontece a mesma coisa. É só quando comparamos as medidas de A e B, que notamos uma correlação impossível de explicar com a física clássica: sempre que A mede um fóton com polarização vertical, B também mede vertical, acontecendo a mesma coisa com os fótons de polarização horizontal.

Notem que não se pode dizer nada sobre a polarização de cada fóton individual antes deles serem medidos. Os resultados das medidas em A e B são completamente aleatórios. Isso significa que o emaranhamento não é uma “ação fantasmagórica à distância”, como disse Einstein, porque não é possível usar o fenômeno para transmitir informação instantaneamente. Os observadores em A e B só notam que suas medidas são idênticas quando comparam seus dados.

A palavra emaranhamento apareceu pela primeira vez em um trabalho de Schrödinger, publicado em 1935. No artigo, ele escreveu:

O melhor conhecimento possível do todo não inclui o melhor conhecimento possível de suas partes — e é esse fato que continuamente vem nos assombrar
Erwin Schrödinger
SCHRÖDINGER, Erwin. 1935. Die gegenwärtige Situation in der Quantenmechanik. Naturwissenschaften, Vol. 23:807-812.

Em 1935, Einstein e seus colaboradores, o físico russo-americano Boris Podolsky (1896-1966) e o israelense-americano Nathan Rosen (1909-1995) escreveram um artigo em que argumentaram que o emaranhamento era uma evidência de que a mecânica quântica seria uma teoria incompleta. Esse argumento ficou conhecido como o paradoxo EPR, em alusão às iniciais de seus autores. 

Einstein não aceitava que a mecânica quântica pudesse ser uma teoria fundamental da natureza, uma vez que a teoria prevê apenas as probabilidades do que pode acontecer em um experimento. Para Einstein, Podolsky e Rosen, a verdadeira teoria fundamental deveria ser realista e local, assim como é a física clássica. Uma teoria realista é aquela em que as propriedades das partículas existem antes de serem medidas. Já uma teoria local é aquela em que as partículas só são influenciadas por efeitos em suas vizinhanças e essas influências não podem viajar mais rápido do que a luz. Assim, o fato do emaranhamento ser um fenômeno nem realista e nem local implicaria que devem existir “elementos de realidade” ocultos que a mecânica quântica não seria capaz de descrever.

O paradoxo EPR continuou desafiando a mecânica quântica por décadas, até que uma série de experimentos de óptica quântica comprovaram que a teoria é suficiente para explicar completamente o emaranhamento.

No mesmo artigo de 1935 em que introduziu o emaranhamento, Schrödinger apresentou o seu famoso paradoxo do gato

Nele, um gato é colocado dentro de uma caixa, junto com um frasco de vidro com veneno, ligado a um mecanismo com um átomo, capaz de emitir um fóton a qualquer momento. Se o fóton fosse emitido, desencadearia o mecanismo que quebra o vidro de veneno, matando o gato. Mas acontece que a função de onda do átomo se encontra em um estado de sobreposição quântica entre emitir ou não o fóton.

Se as regras da mecânica quântica também se aplicam ao gato, isso significa que ele está emaranhado com o átomo, em um estado de sobreposição de vivo e morto ao mesmo tempo. “O emaranhamento foi introduzido nesse caso como uma consequência paradoxal de se tentar estender a mecânica quântica ao mundo macroscópico”, explica Chaves.

Por que o gato de Schrödinger não existe?
Por que não vemos no cotidiano objetos em estado de sobreposição de estar em dois lugares ao mesmo tempo?
Afinal, se os átomos obedecem às leis da mecânica quântica, por que os objetos macroscópicos, feitos de átomos, seguem as leis da física clássica?

A resposta é que esses fenômenos quânticos, como a sobreposição e o emaranhamento, são extremamente sensíveis à interação com o ambiente. Minúsculas trocas de energia por meio de vibrações mecânicas, flutuações de temperatura e outras interações podem destruir essas propriedades quânticas. E quanto mais macroscópico for um objeto, mais rapidamente essa destruição acontece. Por exemplo, o tempo que o gato de Schrödinger leva para sair do estado de sobreposição de vivo e morto, para um estado comum, de estar exclusivamente vivo ou morto, é menor do que o tempo que um elétron leva para completar uma órbita em torno de um átomo.

A interação dos objetos quânticos com o ambiente é um fenômeno conhecido como perda de coerência ou decoerência. Entender e controlar a decoerência é fundamental para as tecnologias quânticas de segunda geração, que procuram fazer uso da sobreposição e do emaranhamento pelo maior tempo possível.

A coerência está ligada ao fenômeno ondulatório da interferência. Tanto nos experimentos de fenda dupla com ondas na água, quanto com os envolvendo partículas quânticas, o padrão de interferência surge porque as ondas que saem das fendas estão sincronizadas de tal forma que, em certas regiões, o máximo de uma onda coincide perfeitamente com o mínimo de outra, criando uma interferência destrutiva e, em outras regiões, os máximos ou mínimos das ondas se sobrepõem, em uma interferência construtiva. Essa coerência das ondas desaparece se, por exemplo, o painel com as duas fendas for ligeiramente sacudido, fazendo com que as ondas se adiantem ou atrasem de maneira irregular. No lugar do padrão de interferência, surge um borrão, resultado da decoerência das ondas.

Uma das explicações da mecânica quântica para a decoerência de um conjunto de uma ou mais partículas é o emaranhamento desse conjunto com o ambiente ao redor. À medida que esse conjunto interage com outras partículas do ambiente, como fótons, átomos ou vibrações térmicas, ele pode acabar se emaranhando com esses elementos externos. Esse emaranhamento faz com que sua função de onda original se misture de maneira irreversível com o ambiente, perdendo sua coerência. Como consequência, o conjunto passa a ter um único estado bem definido, como descrito pela física clássica.

Reportagem: Igor Zolnerkevic (ICTP-SAIFR);
Revisão: Ana Luiza Serio (ICTP-SAIFR), Larissa Takeda (ICTP-SAIFR);
Consultoria Científica: Gustavo Wiederhecker (UNICAMP), Marcelo Terra Cunha (UNICAMP);
Edição: Victoria Barel (ICTP-SAIFR).

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