Dentre as várias áreas que interagem nos estudos de Sistemas Complexos, a relação entre física estatística e as ciências biológicas têm evoluído consideravelmente nas últimas décadas. Uma das principais contribuições da física nessa interação é a de fornecer metodologias e técnicas, que antes eram utilizadas apenas para estudar fenômenos físicos, mas que passaram a ser aplicadas, também, em estudos de fenômenos biológicos, como dinâmica de populações e evolução, além de poder ter aplicações em estudos de ecologia.
Antes da utilização de técnicas como modelagens computacionais e probabilidade, próprias da física estatística, analisar sistemas biológicos era extremamente complicado: uma das razões são as diferentes escalas em que os seres vivos interagem, uma vez que as unidades envolvidas no sistemas podem ser muitas e de naturezas distintas. Além disso, os sistemas biológicos estão em constante modificação e adaptação, tornando difícil prever as interações entre suas unidades. Diante da necessidade de entender melhor esses sistemas, e estimar com mais precisão como eles vão se comportar, é essencial desenvolver ferramentas capazes de lidar com essa grande complexidade. Por esse motivo, metodologias que usam a estatística e a probabilidade são fundamentais na busca por soluções para questões da biologia e da ecologia. É justamente para suprir essa lacuna metodológica que a física estatística aparece.
Ainda que com limitações, modelos computacionais permitem a projeção de cenários que seriam muito difíceis de acompanhar experimentalmente e podem produzir equações que tornam possível estudá-los de modo matemático. As simulações ajudam cientistas a levantar hipóteses novas e melhor fundamentadas acerca do funcionamento de um sistema. O alerta é comum entre os físicos: o modelo é uma versão muito simplificada da natureza. Mas como uma versão simplificada da natureza pode nos ajudar a entender melhor os fenômenos naturais que envolvem seres vivos?
Se físicos teóricos e experimentais vão estudar sistemas biológicos, faz sentido que nos perguntemos se é possível comparar sistemas físicos com aqueles compostos por seres vivos. Flora Souza Bacelar, pesquisadora da Universidade Federal da Bahia, trabalha com diversos campos da área de sistemas complexos, o que inclui sistemas ecológicos e até mesmo sociais. Para ela, a comparação entre sistemas de naturezas diferentes depende do olhar aplicado a eles. Cada sistema tem suas particularidades e, dependendo das perguntas que se faz, encontraremos mais ou menos semelhanças entre sistemas compostos por seres vivos e os que não.
O físico espanhol Ricardo Martínez-García, professor do Instituto de Física Teórica da UNESP e pesquisador do ICTP-SAIFR, trabalha na interface entre Ecologia e Física e vê algumas diferenças importantes entre esses dois tipos de sistemas. Para ele, o fato de um sistema ser composto pela interação entre seres vivos adiciona um ingrediente extra de complexidade aos sistemas.
Para Martínez-García, a maneira como os seres vivos respondem ao meio externo, aos próprios corpos e às mudanças não é a mesma que a dos seres inertes. É daí que surge o ingrediente extra da complexidade e que, segundo o professor, também é responsável por “adicionar uma riqueza maior ao conjunto de fenômenos que a gente espera que aconteçam nesses sistemas complexos biológicos”. Ele acrescenta que, ao avaliar sistemas compostos por seres vivos, é necessário levar em conta o fator comportamental, que torna a interação indivíduos-ambiente e indivíduos-indivíduos mais difícil de ser calculada de modo satisfatório. Por fim, a professora Flora destaca que, mais importante que saber se um sistema é biológico ou não, é saber o que se quer descobrir e tentar compreender as complexidades de cada sistema.
Certas perguntas, portanto, não poderão ser respondidas pela observação em campo de sistemas biológicos. Por isso, as ferramentas da física estatística se tornam importantes. Segundo o professor Marcus Aguiar, os modelos e as equações permitem produzir simulações que tornam possíveis comparações e o levantamento de hipóteses testáveis que seriam impossíveis pela observação direta da natureza, porque selecionam um aspecto específico do sistema sobre o qual se deseja estudar. Para a física Flora Souza Bacelar, todo modelo tenta responder uma pergunta científica, e com um trabalho interdisciplinar, emergem perguntas secundárias que vão ajudar a escolher quais ferramentas de modelagem ajudam a responder essas perguntas.
Se a teoria da evolução resolveu muitos problemas teóricos que ajudam a explicar como novas espécies surgem e os processos de mutação, ainda é muito difícil de avaliar esses cenários de modo concreto quando se trata de sistemas macroscópicos. Para entender o processo de especiação, ou como surgem novas espécies, é preciso analisar milhares de gerações e ainda avaliar como essas gerações se modificaram mediante outras espécies e características ambientais, como o clima e barreiras geográficas. É aqui que o uso de simulações é de grande ajuda para permitir estudos mais elaborados sobre a evolução de grandes animais, ou de processos evolutivos que se desenrolam em centenas ou até milhares de anos e que, de outra forma, seriam impossíveis de serem estudados.
Estudar sistemas evolutivos de grandes animais, como pássaros, passa por duas grandes dificuldades: a primeira é a de acompanhar a espécie e suas eventuais mutações e modificações genéticas; já a segunda é lidar com as barreiras geográficas e outros aspectos ambientais responsáveis por modificar a interação entre os indivíduos da espécie e, consequentemente, alterar todo o sistema. Barreiras geográficas são elementos capazes de criar isolamentos de espécies, como rios, montanhas, cânions, o que pode ter por consequência a criação de sub-populações derivadas de uma determinada espécie.
O físico Marcus Aguiar pesquisa a importância das barreiras geográficas e da seleção natural nos processos evolutivos de algumas espécies, com alguns trabalhos dedicados ao raro fenômeno das espécies em anel. Marcus é professor do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas desde o fim dos anos 80 e, nos últimos anos, concentrou sua pesquisa no estudo de dinâmicas de população em diferentes contextos.
O fenômeno das espécies em anel é particularmente profícuo para avaliar o impacto de barreiras geográficas nos processos de especiação. Quando uma barreira geográfica separa indivíduos da mesma espécie por períodos suficientemente longos, como o caso dos pássaros na Ásia, a comparação entre as modificações genéticas dos pássaros separados pode fornecer dados que ajudam os pesquisadores a fazer perguntas melhores, e que podem ser respondidas com a ajuda de simulações. O fenômeno das espécies em anel é muito raro porque depende de um equilíbrio muito fino entre taxa de expansão da espécie e sua taxa de mutação, o que acontece em contextos muito específicos.
Um sistema complexo biológico como a evolução de pássaros pode nos ajudar a entender porque os modelos são importantes, ainda que sejam versões simplificadas da natureza. Aguiar aponta que o uso combinado de dados empíricos com aqueles gerados em modelos torna possível comparar variáveis e descobrir se há alguma conexão entre elas. Foi dessa forma que seus estudos apontaram, por exemplo, que existe uma relação direta entre a distância genética e a distância geográfica, ou seja, quanto mais distante uma espécie está da outra, mas diferente geneticamente ela é.”
Sabendo que algumas perguntas só podem ser respondidas com a ajuda de modelos computacionais, a física Flora Souza Bacelar propôs, em sua tese de doutorado, um modelo para entender o papel do fogo na dinâmica populacional de árvores nas savanas.
Os ecossistemas das savanas são caracterizados, entre outras coisas, por uma coexistência robusta entre árvores e gramas. A dinâmica da população de árvores, apesar disso, é bastante complexa e precisa ser investigada considerando duas classes de interação nas savanas: interações cooperativas e interações competitivas. Uma das grande dificuldades de entender a dinâmica dessas populações é justamente a impossibilidade de isolar essas duas classes de interação, que frequentemente acontecem ao mesmo tempo.
No modelo de fogo nas savanas, Bacelar estudou o efeito do fogo nas interações entre árvores, árvores jovens e gramas, justamente para tentar entender de que forma operações contraditórias como cooperação e competição afetam a dinâmica populacional e os padrões espaciais de árvores nesse ecossistema. Utilizando outros modelos como referência, foram selecionados cinco estágios principais para serem avaliados: grama (G), árvores jovens (JT), árvores adultas (AT), queimadas (B) e cinzas (A). Seu modelo pôde confirmar algumas hipóteses levantadas em estudos teóricos e contribuir para a construção de novas hipóteses.
Diferentemente das árvores de algumas florestas, árvores encontradas nas savanas costumam ser mais resistentes ao fogo, de modo que este afeta mais as gramas e as árvores jovens. Para a professora, o principal papel do fogo aparece de duas formas: por um lado, ele promove um modo indireto de competição entre gramas e árvores, onde as gramas se recuperam mais rápido do que as árvores jovens, tornando-se a classe de plantas predominante logo após as queimadas. Por outro, vários estudos sugerem que árvores maiores protegem ativamente árvores menores, aumentando sua chance de sobrevivência às queimadas. Para lidar com esse cenário complexo, a pesquisadora propôs um modelo capaz de avaliar como o fogo afetava a densidade populacional das árvores no espaço.
Da mesma forma que a escala temporal é um desafio nos estudos de sistemas evolutivos que envolvem pássaros, quando se trata das raízes das plantas, grandes escalas também podem ser um problema. O grupo de pesquisa do físico Ricardo Martinez Garcia estuda como as plantas interagem entre si, e com o meio externo, e como essas interações podem ser observadas em padrões que se espalham por escalas maiores, na ordem dos kilômetros. Além da extensão do sistema, o solo é um dos meios mais complexos de observar um sistema, tanto por não ser possível ver o que está acontecendo no subterrâneo, como pela quantidade de seres vivos e de processos químicos e biológicos que existem ao mesmo tempo.
Ricardo Martínez-García é um físico espanhol, radicado no Brasil há três anos em trabalho no ICTP-SAIFR e no Instituto de Física Teórica da UNESP, em São Paulo. Sua pesquisa é na interface da Física e da Ecologia, em especial na aplicação de ferramentas da física estatística no estudo de sistemas ecológicos. A competição entre plantas foi objeto do estudo publicado no periódico Science, que teve Martínez-García como um dos autores. A modelagem matemática entrou como ferramenta essencial para o cálculo teórico da estratégia ótima de crescimento de uma planta. A partir do modelo, os pesquisadores puderam não apenas descrever o crescimento das raízes quando diferentes plantas interagem entre si, mas também fazer predições teóricas de quais seriam as melhores estratégias para determinados fins.
A ideia do estudo é que, no futuro, seja possível extrapolar o conhecimento adquirido sobre o comportamento das raízes de um meio específico para escalas bem maiores, envolvendo ecossistemas inteiros. Como o professor Martínez-García comenta: “poderemos entender melhor os ecossistemas a um nível mais geral, mais global, como eles funcionam por conta das interações que acontecem abaixo do solo”.
Nesta pesquisa, a troca de dados de campo e do modelo tem uma dinâmica bastante particular. Os modelos são usados, antes de tudo, para interpretar dados que são coletados em ecossistemas reais. Alimentados pelos dados de campo, os modelos começam a ser usados para fazer previsões de como esses sistemas vão se comportar, até mesmo em outros ecossistemas não observados experimentalmente. “Dessa forma nós estabelecemos uma conversa, uma troca de informações, entre trabalhos experimentais e trabalhos teóricos e matemáticos”. Para Martínez-García, essa dinâmica permite que os modelos sejam melhorados com dados empíricos e que as pesquisas experimentais sejam baseadas em pesquisa teórica muito mais sólida, o que contribui para a construção de um modelo teórico que faça previsões mais corretas e descrições mais acuradas do sistema.
O estudo da competição entre raízes e como isso afeta seu crescimento é promissor para vários campos do conhecimento, que incluem as mudanças climáticas, a evolução e também aplicações na agricultura. No caso da agricultura, compreender qual é a melhor estratégia para o crescimento de raízes, gastando o mínimo de energia da planta,pode significar mais energia para ser empregada no crescimento de frutos e outros produtos valiosos para as atividades agrícolas.
Reportagem: Ana Luiza Sério (ICTP-SAIFR), Malena Stariolo (ICTP-SAIFR), Yama Chiodi (ICTP-SAIFR);
Consultoria Científica: Daniel Stariolo (IF-UFF);
Edição: Malena Stariolo (ICTP-SAIFR).