Sociofísica,
a física das partículas humanas

Quando uma torcida prepara uma ôla no estádio, ainda que muitos indivíduos se atrasem na hora de levantar os braços e que alguns sequer se movam, é o efeito mais geral de uma onda humana que a torna identificável à distância. Apesar de ser um fenômeno produzido sem muita atenção por coletivos humanos, o efeito emergente dessa ação, aparentemente mundana, pode atrair o interesse de físicos.

O encontro da física e outras disciplinas das ciências naturais, que exploramos ao longo do especial,  pode causar certo estranhamento à primeira vista, mas nada que se compare ao estranhamento que causa saber que físicos também estudam sistemas sociais.  Esse campo da física é conhecido como: física da dinâmica social, ou Sociofísica. Problemas como a dinâmica da opinião pública, a criação de uma língua ou os engarrafamentos nos grandes centros urbanos tradicionalmente são estudados pelas ciências sociais. Mas como esses sistemas que envolvem humanos e suas sociabilidades podem se tornar objetos de estudo da física?

Se parece algo que esperaríamos de alguma ficção científica, não é por acaso. Isaac Asimov descreveu, na trilogia Fundação, uma disciplina fictícia que se chamava psico-história, destacada pela capacidade de predizer os comportamentos de uma sociedade por meio da computação. Ainda que as ambições da sociofísica sejam mais modestas, as ideias centrais partem do mesmo princípio: é possível modelar sistemas sociais para compreendê-los melhor e tentar antever alguns de seus comportamentos inesperados. 

O que permite um encontro produtivo de física e sistemas sociais são dois fatores principais: O primeiro, e mais importante, é que muitos sistemas sociais são sistemas complexos, o que significa que, além de  possuir muitas unidades em interação, eles apresentam comportamentos emergentes e capacidade de adaptação. E, se eles são sistemas complexos, a caixa de ferramentas da mecânica estatística também serve para tentar compreendê-los, o que indica o segundo fator: Indivíduos humanos podem se comportar de maneira completamente imprevisível, mas, em um cenário que inclui muitos indivíduos interagindo entre si, alguns padrões coletivos aparecem. É impossível ter certeza sobre o que virá, mas a probabilidade e a estatística conseguem descrever cenários futuros mais prováveis.   

Celia Anteneodo é professora do Departamento de Física da PUC-Rio e especialista em física estatística e sistemas complexos. A pesquisadora utiliza modelos para estudar sistemas de diferentes naturezas, alguns clássicos à sociofísica, como modelos de formação de opinião, e outros mais diversos, como a dinâmica de populações biológicas.

Essa diversidade de sistemas é algo que se torna possível no estudo de sistemas complexos utilizando as ferramentas da física estatística. Seja para grãos de areia, moléculas em gases ou carros num engarrafamento, um modelo estatístico pode simplificar as características de um sistema e prever certos comportamentos emergentes.

Quando o número de elementos é muito grande, mesmo sendo partículas inanimadas, é impossível acompanhar cada uma separadamente, mas o grande número leva ao surgimento de leis estatísticas que permitem descrever o sistema em conjunto. É nisso que reside o sucesso da física estatística e, graças a isso, é que pode ser aplicada aos mais diversos sistemas formados por muitas partes em interação.
Celia Anteneodo
Pesquisadora do Departamento de Física da PUC-Rio

Os temas mais frequentes na sociofísica costumam ser sistemas de mobilidade humana (como evacuação de segurança em ambientes fechados, trânsito e circulação de usuários de transporte público) e modelos de dinâmica de opinião (como eleições, o surgimentos de movimentos sociais, viralização nas redes, preferências de produtos de consumo, etc). A pesquisadora conta que as interações mais comuns entre indivíduos humanos são a imitação e a não-conformidade. No caso citado da ôla em um estádio de futebol, a interação predominante é a imitação, mas às vezes um comportamento coletivo é justamente fazer o contrário do que um grupo de pessoas está fazendo, como quando uma torcida vaia os gritos da torcida adversária, por exemplo. Apesar de simples, essas interações podem levar em conta outras variáveis como teimosia e grau de convicção.

Contudo, a maioria dos sistemas que são objeto da física social não são baseados em interações tão simples assim. Sistemas econômicos por vezes ganham até uma área de estudo próprio, na chamada “econofísica”. Mas assuntos bem mais complexos como a distribuição de riquezas e a criminalidade, o surgimento de guerras, a disseminação de doenças, etc, também podem ser de interesse da sociofísica, tornando-se objetos de modelos que tentam responder algumas perguntas científicas que esses fenômenos podem gerar.

José Fernando Fontanari, professor titular do Instituto de Física da USP é também especialista em sistemas complexos e, tal como Celia, já pesquisou sistemas de naturezas muito distintas, como redes neurais, evolução de espécies e inteligência coletiva. Ele diz que, no jargão dos físicos, a física estatística permite que possamos entender os comportamentos emergentes como “transições de fase”, ou alterações do estado de equilíbrio de um sistema.

Usando a estatística e a probabilidade para estudar sistemas biológicos ele acabou encontrando pontes interdisciplinares que abriram o caminho para o estudo de sistemas sociais. Por essa razão, um dos assuntos de suas pesquisas mais recentes é a inteligência coletiva, de interesse tanto para as ciências biológicas como para as sociais. Fontanari explica  que “a inteligência individual (assim como a consciência) é uma propriedade emergente da população de neurônios no cérebro”, dessa forma, a inteligência coletiva seria a propriedade emergente de uma rede de seres, sejam peixes, pássaros ou humanos.

Dependendo da escala, um sistema complexo inteiro pode ser apenas uma unidade de um outro sistema de maior escala. Um bom exemplo disso é pensar como a inteligência humana e a inteligência de um coletivo de humanos está ligada. A inteligência de um indivíduo humano pode ser pensada como comportamento emergente de uma rede de neurônios em interação. Já a inteligência coletiva seria um comportamento emergente da interação entre as várias inteligências humanas individuais. Na inteligência coletiva, cada humano seria o equivalente a um neurônio, assim, uma rede humana permite a emergência de uma inteligência coletiva.

Penso que a inteligência coletiva seja uma propriedade emergente de um grupo de indivíduos que buscam a solução de um problema comum. Por exemplo, os padrões espaciais extraordinários exibidos por cardumes de peixes e bandos de aves são soluções para os problemas de confundir um predador e economizar energia em voos longos. Esses padrões são, portanto, exemplos de propriedades emergentes que podem ser vistas como inteligência coletiva. Um belíssimo exemplo de inteligência coletiva que se encaixa perfeitamente na visão de Física Social de Quételet é o fenômeno da sabedoria das massas. Em 1907, Francis Galton descreveu o resultado de uma rifa realizada em uma feira agropecuária, cujo desafio era estimar o peso de um boi. O valor da média das estimativas individuais ficou apenas 1% acima do peso correto. Usando o insight de Quételet, a média, que nesse caso representa a sabedoria do grupo de apostadores, seria reflexo de alguma lei que governa decisões coletivas.Ainda hoje não há nenhuma explicação satisfatória para essa estranha precisão da sabedoria das massas, embora minha tendência seja pensar que se trata de uma ilusão, um efeito da falácia da atenção seletiva.
José Fernando Fontanari
Pesquisador do IFUSP

Apesar do campo de Sistemas Complexos ter se tornado mais popular nas últimas décadas entre físicos, ambos os pesquisadores são unânimes na avaliação de que a sociofísica existe, pelo menos, desde a primeira metade do século XIX, com a publicação de “Sobre o homem e o desenvolvimento de suas faculdades: ensaios de uma Física Social”, em 1835. O livro foi escrito pelo astrônomo belga Adolphe Quételet, que introduziu a ideia de que, por meio de um cidadão médio, quanto maior o número de indivíduos observados, mais se apagariam peculiaridades individuais e emergeriam características gerais identificáveis. 

Considerando todas essas questões, podemos concluir que a física social não se afasta tanto assim da física, porque apenas insere de novidade a ideia de “partículas humanas” ao invés de outras mais tradicionais à disciplina, como átomos e moléculas. Celia Anteneodo explica que o problema clássico da mecânica estatística, que é entender propriedades macroscópicas a partir da estatística dos estados microscópicos, não se altera na transposição da física para a sociofísica. 

Essa passagem, contudo, pode não ser tão simples e, segundo  a professora Anteneodo, boa parte das críticas voltadas à física social se atentam justamente às limitações da equiparação entre partículas humanas e partículas inanimadas da matéria. Anteneodo acredita, contudo, que a sociofísica representa um importante passo em direção a uma ciência mais interdisciplinar. Modelos físicos podem levantar novas questões para as ciências sociais, assim como as ciências sociais podem ajudar a melhorar os modelos para torná-los mais corretos. A pesquisadora acrescenta que o conceito de universalidade da física conseguiu demonstrar, nos mais diversos tipos de sistemas estudados, que não é necessário conhecer ou simular todos os detalhes microscópicos de um sistema se o objetivo é entender os comportamentos emergentes. Da mesma forma como pressão, temperatura e o volume de um gás podem ser determinados sem conhecer a posição e a velocidade de cada partícula, a sociofísica também consegue fazer boas descrições e previsões para sistemas sociais sem conhecer as ações de cada indivíduo. 

O advento da computação na modelagem colocou ainda mais possibilidades de interações entre a física e as ciências sociais. O melhor exemplo disso é a importância que estudos de “big data” ganham na contemporaneidade. O uso de big data nada mais é do que tentar criar modelos capazes de lidar com quantidades enormes de dados. O uso massivo das redes de computadores e das redes sociais mudou a forma como comportamentos sociais emergentes são produzidos e reconhecidos. Novas ferramentas para lidar com novos fenômenos se tornam cruciais nesse processo. São uma marca para os desafios futuros do campo e o constante desenvolvimento de novas ferramentas de pesquisa que aproximam as ciências sociais e exatas na produção de conhecimento.

Reportagem: Ana Luiza Sério (ICTP-SAIFR), Malena Stariolo (ICTP-SAIFR), Yama Chiodi (ICTP-SAIFR);
Consultoria Científica: Daniel Stariolo (IF-UFF);
Edição: Malena Stariolo (ICTP-SAIFR).

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